quarta-feira, 5 de agosto de 2009
by Imprensa

Brasileira Raquel Rolnik, relatora da ONU, apresenta nesta semana relatório sobre o drama da moradia no mundo

Jamil Chade
Um relatório da ONU preparado por uma brasileira vai revelar que a crise financeira ameaça deixar milhões de pessoas sem casa nos países ricos. O documento, obtido com exclusividade pelo Estado, foi preparado pela relatora das Nações Unidas para o Direito à Moradia, Raquel Rolnik, professora da USP. Madri, Lisboa, Paris, Los Angeles e outras metrópoles do primeiro mundo começam a enfrentar uma realidade até pouco tempo impensável nesses países: a favelização de suas periferias.

As informações serão reveladas aos 193 países da Assembléia Geral da ONU na quinta-feira em Nova York, como um alerta de que a crise financeira e o abandono dos imigrantes pode ser uma mistura explosiva. Só nos Estados Unidos, a crise das hipotecas já deixou 2 milhões de pessoas sem casa. Outros 2,2 milhões vão perder as casas até o fim do ano que vem.

"O modelo de financiamento de moradia precisa ser repensado. O crédito como solução para a moradia é um sistema que fracassou", afirmou a brasileira, que assumiu neste ano o posto de principal responsável na ONU pelo direito à moradia.

Nas favelas das periferias das cidades européias, a grande maioria dos habitantes é formada por imigrantes, que criam verdadeiros guetos. Muitos são obrigados a viver em barracões ou carros abandonados. O problema aumentou nos últimos cinco anos. E deve intensificar-se com a crise. Dados da União Européia mostram que a pobreza hoje atinge 72 milhões de pessoas na região, 16% da população. Ainda que a maior incidência esteja no Leste Europeu, o fenômeno é cada vez mais visível às margens das grandes cidades. No mundo todo, um bilhão de pessoas vive em favelas, segundo a ONU, e, se a atual tendência continuar, esse número chegará a 2 bilhões em 2030. Na Europa, o número é relativamente pequeno e representa apenas 6% das pessoas que vivem em favelas e cortiços no mundo. Assim como a taxa de pobreza, parte importante dessas pessoas está no Leste Europeu, especialmente Bulgária, Romênia e Ucrânia. Na periferia de Madri, estima-se que 5 mil pessoas vivam em "chabolas" - equivalente a favelas. Isso sem contar cortiços.

Raquel lembra que o boom imobiliário dos últimos anos expulsou a população mais pobre dos centros das cidades. O problema é que o modelo não ofereceu alternativa e o Estado abandonou essa população, principalmente imigrantes. Em Madri, já há pelo menos 180 mil famílias de imigrantes que, até o fim do ano, terão de abandonar suas casas por causa das dívidas e por não conseguir pagar hipotecas. Em Roma, os muros do milionário Vaticano são ocupados cada vez mais à noite por dezenas de mendigos e sem-teto, enrolados em jornais. Pela manhã, esperam sopas que a Santa Sé distribui. Na França, a crise dos imigrantes nos guetos explodiu há três anos. La Courneuve, periferia de Paris, transformou-se em símbolo de abandono dos imigrantes e do fracasso das política de integração da sociedade francesa e dos estrangeiros, a maioria muçulmanos. Lá vivem 35 mil pessoas de 80 nacionalidades. Foi nesse bairro que os distúrbios começaram em 2005. Nos últimos meses, grupos da polícia européia vêm alertando que a deterioração das condições de vida nas periferias é ideal para a proliferação de células terroristas.

Para a relatora da ONU, "políticas urbanas raramente incluem medidas para facilitar a integração de imigrantes". "O resultado são cidades fragmentadas e divididas, com a erosão da coesão social", alertou em seu documento oficial. "A Europa está revertendo décadas de políticas sociais exemplares."

Em Portugal, a transformação das periferias em guetos também assusta por causa da violência. Entre Lisboa e Setúbal, brasileiros criaram o Primeiro Comando de Portugal (PCP), imitação do Primeiro Comando da Capital. Os jovens desse grupo viviam em situação de baixa renda no Brasil. Em Portugal, não conseguiram mudar de vida. Agora são suspeitos de uma série de assaltos e mesmo mortes. Vídeo no YouTube traz o hino do grupo: "Revolucionário, terrorista, sanguinário. Implora, chegou a nossa hora. Vou mostrar a bandeira da gente. Sou da periferia, parte mais sombria da cidade."

No lugar de ajuda, governos de países ricos optam por criminalizar imigrantes ilegais. Na rica Suíça, favelas como as de Madri não existem, mas, pela primeira vez, pedintes e pessoas dormindo nas ruas passam a fazer parte das ruas de Genebra ou Zurique. Um semáforo de Genebra tem até "flanelinhas" da Mauritânia. Há poucos meses, o governo editou uma lei que chocou a muitos: proibir mendigos e sem-teto. Quem pede dinheiro nas ruas ou dorme em praças seria simplesmente presos. O consulado da Romênia, de onde vêm muitos imigrantes, protestou. Mas a lei foi adotada.

A expulsão de pobres para os limites das cidades ricas também ocorre nos Estados Unidos. "Está na hora de rever esse modelo e garantir que o direito à moradia deva ser aplicado a todos", resume Raquel.

Fonte: Estadão

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