É noite de jogo do Brasil. São cerca de 20h no bar Zé Batidão, bairro de Piraporinha, zona sul de São Paulo. Faz frio, e, aos poucos, as mesas de plástico vermelhas espalhadas pelo salão vão sendo ocupadas por dezenas de pessoas. São metalúrgicos, taxistas, motoboys, secretárias, professores, vigilantes, lanterninhas, encanadores, que moram nas redondezas do bar e em outras quebradas da cidade. A razão do encontro dessa gente é a literatura. Há seis anos, o bar sedia o Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, que acontece religiosamente todas as quartas-feiras, das 21h às 23h.
Por entre as mesas apinhadas de jovens, velhos e crianças, garçons equilibram-se com tigelas de escondidinho de carne-seca, especialidade da casa. No período que antecede o início do sarau, a música rola solta. Às 21h em ponto, o poeta Sérgio Vaz, idealizador do projeto que reúne artistas da periferia, pede a atenção. Feitas as apresentações, todos cantam, em coro: “Povo lindo, povo inteligente... Uhh, Coperifa, uhh, coperifa!”.
Dona Edith, senhora negra de cabelos brancos, é a primeira a declamar seus versos. Amparada por uma moça mais jovem, descobrimos, depois, que dona Edith é cega. Durante a noite de 9 de setembro, 50 pessoas apresentaram-se no sarau. Uns mais tímidos, outros mais ousados. “Essa é a primeira vez dele (ou dela) aqui”, são anunciados alguns, sob aplausos da platéia.
Poeta dos escravos
Um dos poetas veteranos da Cooperifa é Elber Ladislau, de 33 anos. Negro, sorriso largo, mais de 1,90. Frequenta o sarau há oito anos. Antes disso, já escrevia, “mas não acreditava que haveria um lugar onde poderia mostrar minha crítica ao sistema”, explica. Na infância, Elber gostava de literatura, mas não de escola. O desinteresse cresceu ainda mais quando uma professora puxou sua orelha por ele ter se negado a cantar. “Isso interferiu na minha vida. Foi um trauma”. Elber largou a escola. Muitos anos depois, já adulto, trabalhando com dedetização de caixas d’água em prédios de bairros da classe média paulistana, achou livros no lixo. “Eram obras de Cruz e Souza, Alphonsus Guimarães e Castro Alves”. Por motivos mais que óbvios, este último o marcou. Quando perdeu o emprego, passava o dia decorando os poemas do “poeta dos escravos”, em especial “Navio Negreiro”.
Incentivado pelos livros, voltou a estudar, matriculando-se num curso supletivo. Na mesma época, foi apresentado à Cooperifa por um amigo. Desde então, suas noites de quarta-feira são marcadas pela poesia. “Foi uma das melhores coisas da minha vida. Aqui, um aprende com o outro. E fazendo poesia eu não morro conformado”, conta o poeta, que trabalha como atendente na Pinacoteca do Estado.
Fundada em 2001 por Sérgio Vaz e Marco Pezão, a Cooperifa é uma das principais iniciativas culturais da periferia de São Paulo, onde, em geral, o Estado só se faz presente por meio da força. “Na periferia, o único lugar que a gente tem para receber as pessoas é o bar. Por isso, transformamos o bar em centro cultural. Foi aí que surgiu o sarau da Cooperifa”, conta Sérgio. Durante um ano e meio, os saraus ocorreram no bar Garajão, em Taboão da Serra. No primeiro encontro, havia 17 pessoas, sendo que quatro delas eram esposas de poetas. “Mas foi crescendo, virando um quilombo cultural. As pessoas vinham de outros lugares para conhecer. Era gente que guardava seus escritos e começou a achar sentido para aquilo que estava na gaveta. Elas nos assistiam, e começaram a pensar: ‘É tão simples assim? Então vou fazer também’”.
Revolta canalizada
Inspirado na Semana de Arte Moderna de 1922, o sarau é resultado da teimosia de Vaz. “Todo mundo sabe que na periferia não tem cinema, teatro, museu. A gente resolveu parar de reclamar e fazer”, conta. “Ela não é pioneira, mas tem o mérito de acordar outros movimentos e poetas”, explica.
Ele conta que, no começo do projeto, as poesias eram de revolta, protesto, desabafo. “Mas, com o tempo, as pessoas foram construindo a poesia, e a poesia foi reconstruindo a pessoa”. No entanto, assinala que o protesto é natural, “porque a periferia é onde moram os negros, os excluídos, os brancos fodidos. É onde mora o pobre, e a partir do momento que você começa a ler, passa a ver as coisas que poderia ter. Como não tem, fica mais revoltado. Só que agora essa revolta é canalizada”. Prova disso é que mais de 50 livros já foram lançados no sarau.
O maior mérito da iniciativa, acredita Vaz, é fazer pela comunidade e amar a periferia. “Eu sou de uma época que a gente queria mudar da periferia, que a gente tinha que mentir que não morava aqui para arrumar emprego. Os bairros eram satanizados”. Hoje, as coisas mudaram, garante o poeta de 45 anos. “Agora a gente quer mudar a periferia”.
Libertação
Em 2003, a Cooperifa mudou-se para o bar de José Cláudio Rosa, o Zé Batidão. Na infância de Sérgio, seu pai fora dono do estabelecimento. O poeta trabalhou lá por 12 anos atrás do balcão e servindo mesas. “Aqui era minha senzala, e hoje é o que me liberta“, revela. “Na periferia, a literatura nunca foi uma arte porque é uma arte da elite.
A gente é iletrado, não frequenta nenhuma academia, não faz parte de nenhum grupo literário, muito pelo contrário. Além de todos os preconceitos, agora tem o preconceito linguístico: ‘essa gente feia com palavra bonita na boca’. Então, incomoda um pouco, mas, e daí, quem pode proibir o povo de ler e escrever? Para quem a gente tem que pedir autorização? Academia brasileira de letras, PUC, USP?”, ironiza.
A iniciativa deu tão certo que rendeu novos frutos. “Somos um movimento de poesia, mas há pessoas que fazem teatro, cinema, artes plásticas, dança, então apresentamos as coisas aqui”. Além do sarau, que hoje reúne entre 300 a 400 pessoas por noite, há, a cada 15 dias, o ‘Cinema na Laje’, espaço alternativo para exibição de filmes e documentários de todas as partes do Brasil e do mundo, e que acontece literalmente na laje, no “andar de cima” do bar, com pipoca de graça. Lá, já houve mostras de cinema nordestino e africano. A ideia é dar vazão a mais um movimento artístico que surgiu na periferia, que é o cinema. “A molecada está fazendo curtas metragens, documentários. Acho que a Cooperifa fez as pessoas sentirem: ‘eu sou possível, e vou tentar fazer isso’”, explica o idealizador do projeto.
Há, ainda, o prêmio Cooperifa, concedido às pessoas que “direta ou indiretamente ajudam a periferia a se transformar num lugar melhor”. Outra iniciativa é a “poesia no ar”, que acontece em abril. Cerca de 500 pessoas juntas soltam, simultaneamente, poesias dentro de balões de gás. A Cooperifa também instituiu o “ajoelhaço”, momento em que os homens se ajoelham para pedir desculpas pelas faltas cometidas com suas esposas. Já durante a “chuva de livros”, recém inaugurada, distribuiu 500 livros para a comunidade. O projeto ainda leva o sarau para escolas e jovens da Fundação Casa.
Bossa nova
Por essas e outras, Vaz afirma: “pelo menos na zona sul, que é onde eu trabalho, estamos vivendo uma efervescência muito grande. Hoje estamos vivendo a nossa Tropicália, nossa Primavera de Praga, a nossa Bossa Nova”. Tal ebulição cultural fez com que a “a bússola mudasse e a classe média se voltasse para cá com outros olhos. A gente também tem cultura, e não somos contra, somos a favor da periferia, do negro, do pobre, do excluído, não é um movimento de ódio. A periferia faz parte do Brasil, quer queiram ou não. É isso que queremos dizer”.
A valorização periférica levada a cabo pela Cooperifa inspirou muitos outros produtores de cultura de outras quebradas e periferias de São Paulo. Hoje, há inúmeras iniciativas semelhantes, como saraus, bibliotecas comunitárias, trabalhos em vídeo, grupos com oficina de literatura, teatro, dança, hip hop. “Pode parecer arrogância, mas hoje há um sarau em Minas inspirado na cooperifa, o “Coletivoz”. Em Porto Alegre, há o Sarau do Bezerra”, em Diadema, há o “Sarau do Povo” Qual a dificuldade de montar um sarau hoje? Em qual periferia não tem bar hoje?”, brinca. A inspiração da Cooperifa também vem do movimento hip hop. “Foi ele que acordou a favela, defende a valorização da quebrada, das pessoas da quebrada, do negro, do branco pobre, trabalhador”.
Caros Amigos - Tatiana Merlino
http://carosamigos.terra.com.br/
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